O PENSAMENTO PARADOXAL:
ILUSÃO, TRANSICIONALIDADE E PARADOXO NA
OBRA DE D. W. WINNICOTT


Raquel Zak de Goldstein

O Paradoxo

"Não deveríamos buscar já na criança as primeiras marcas do afazer poético? A ocupação preferida e mais intensa da criança é a brincadeira. Por acaso teríamos direitos de dizer: toda criança que brinca se comporta como um poeta, pois cria para si um mundo próprio, melhor dito, insere as coisas de seu mundo numa nova ordem que lhe agrada. Além disso, seria injusto supor que não leva a sério esse mundo; pelo contrário, leva muito a sério seu jogo, emprega nele grandes quantidades de afeto. O oposto ao jogo não é a seriedade, senão... a realidade efetiva. A criança diferencia muito bem da realidade seu mundo de brincadeira apesar de toda sua investidura afetiva: e tende a apontar seus objetos e situações imaginados em coisas palpáveis e visíveis ao mundo real".

FREUD, EI creador leterario y el fantaseo (1907) Editorial Amorrortu Tomo IX, Pág. 127 (os destaques são nossos)

O objetivo deste trabalho é apresentar o conceito de paradoxo à luz do pensamento de Winnicott, o qual evidencia eixos que sustentam um teorizar renovador com relação à constituição da subjetividade, o que permite abordar algumas questões complexas do funcionamento mental, que vai construindo a noção de realidade e suas três categorias, sustentado nos fenômenos transicionais que se amparam no pensar paradoxal e na ilusão, tal como a entende o autor. Esta realidade criada ou zona intermediária de experiência é a que habita um sujeito sadio, realidade pessoal de um ser instalado no mundo habitado pelos outros. É a qualidade de realidade que se perde, deixando a esse mundo transformado em um universo cinza, frio e despovoado, nos estados depressivos e na melancolia.
Paradoxo e transicionalidade são inseparáveis.
A percepção do mundo e a realidade que "habitamos" na saúde dependem da ação conjunta (a ação que se desarticula na depressão e a melancolia) do paradoxo e a transicionalidade entendida como produção do inconsciente, produção que chamamos criação, efeito da onipotência do pensamento.
O mundo, a realidade do mundano (e nós estamos incluídos) existem ou não, segundo se sustente - sem traumas - essa atividade específica, que trabalha para atar percepção e produção do inconsciente num universo simbólico imerso num banho de linguagem, porém, a lógica do processo secundário deve permanecer parcialmente em suspenso.
Para "acreditar que alguma coisa È', suspende-se a dúvida e a busca da verdade como verdade objetiva.
E é esse estado psíquico, "acreditar que alguma coisa È', o que permite animar o inanimado. Inanimado que retornaria como "sinistro", perante a vacilação desta atividade, sustentada pelo Eu momentâneo, a serviço de Eros.
A atividade de animação, este ato psíquico de criação, que podemos entender como um germe de crença em ação numa dimensão de tempo como continuamente permite "insuflar" anima, alma, vida (do mesmo jeito dos desenhos animados produzidos pela Disney), é constatado, por exemplo, na sua perda transitória no momento prévio ao dormir, momento povoado dos fenômenos chamados hipnagógicos. Momento de terror na criança, que é resolvido gradualmente com a aquisição e uso da transicionalidade e dos objetos invertidos, ou com a presença da pessoa protetora, que suplementaria a declinante atividade do Eu de dormir. No estado acordado essa atividade liga e representa, fazendo frente aos perseguidores que surgem do não familiar, povoando o inanimado.
Aí trabalha Eros, no domínio da pulsão da morte (FREUD, El Problema Econômico de/ Masoquismo, Editorial Amorrortu. tomo XIX).
O paradoxo sustenta a transicionalidade, esta consegue acreditar numa "realidade" que por uma parte "sabe-se" nem minha nem tua, nem dentro nem fora, nem alucinação nem percepção.
Qualidade de realidade da qual o infans ao mesmo tempo acredita que ele é aquele que faz: "criada por mim". Sendo um híbrido de verdade e fantasia, amálgama do alheio e do próprio, constitui-se na "minha propriedade, meu mundo, aquilo que animo livremente com meu desejo".

Animando "o" inanimado

Ao iniciar a categoria NÃO EU, epifenômeno da atividade do odiar estruturante, o Eu primitivo real põe em marcha o processo destinado a refutar o desprazer, em defesa do prazer, vital para a sobrevivência, e instala outra categoria e outro novo corte entre Eu-Não Eu.
Como salvar a continuidade da percepção perante este possível desastre? Como sustentar a investidura "do" odiado? Como acreditar no "alter"? Como apropriar-se do alheio, alien? Como salvar-se do brutal impacto da angústia perante a impotência e dos efeitos desta inércia, percebida e irresolúvel, perante a ameaçadora proximidade da vivência desorganizadora do "estado de desamparo" freudiano? Como evitar a escuridão e os monstros que habitam o mundo arcaico? E como sustentar e preservar a lógica do processo primário - lógica mágico-animística que conseguiria "animar" por si só o inerte que esta aí -, neste "lugar" no qual deverá projetar o criado, trata-se deste espaço-tempo reconhecido como categoria própria de "La tópica de Ia ensoñacion", segundo G. Bachelard, localizável logicamente pelo processo secundário e o princípio de realidade concomitante, como própria do Não Eu, em si mesmo impassível.
Contamos com a capacidade própria de pensar paradoxal, para não deixar desfalecer a atividade do Eu, essencialmente centrada na percepção, a qual deverá, incansavelmente e sem fratura significativa, registrar e inscrever, retomando uma e outra vez - como matéria perceptível de tudo que lhe é inicialmente externo, incluindo o soma -a construção, transcrições mediante (assim como Freud descreve a atividade psíquica na Carta 52, FREUD, Cartas Completas, Editoria Amorrortu, tomo I, página 274) do universo representacional, dimensão que constitui nossa realidade psíquica e a realidade na qual viveremos uma vida como sujeitos?
Pois parece que dispomos de um tipo de pensamento que, desenfocando a plena vigência da lógica e a objetividade realista, cria animando e vai dotando de vida o campo Não Eu inanimado, com os argumentos ou roteiros de nossa fantasia, Ele como mago outorga deste modo - quase cinematográfico - existência vital e sentido para o que carece disso.
O fenômeno transicional se encarrega de criar - mediante a investidura desse Não Eu - uma ponte salvadora perante o hiato da ausência percebida.
Neste fenômeno psíquico - o chamado fenômeno transicional -, joga um papel importante a capacidade de "relativização", colocar em suspenso o reconhecimento da realidade objetiva e alheia do objeto.
Nesse estado de reconhecimento "relativo" da condição de ser outro, o Eu pode-se permitir paralelamente um trabalho com as semelhanças-diferenças, e o imprescindível jogo do "como se", que se transitará alegremente e, valha a alusão ao título deste encontro: "Winnicott em trânsito", com alívio e prazer no domínio salvador que evite a separação pulsional e sustente a investidura trófica. Remetemo-nos, como exemplos, aos efeitos de surpresa e desconcerto lógico que gera a produção do desenhista Escher, cujos desenhos ilustram o que estamos tratando, e ao universalmente conhecido "jogo do carretel", cenário visível, no meu entender, do trabalho psíquico "entreter-se" equivalente da atividade psíquica que consegue que "a insuportável leveza do ser" possa, magicamente, "ter-se entre" (R. Z. de Goldstein, Chile, 1995).
Este tipo particular de reconhecimento "relativo" da realidade da condição de ser outro permite tolerar e sustentar inicialmente o intolerável do corte ali implicado, e a ausência do objeto originário, encarnado na presença real e na função mãe suficientemente boa. Situação que ameaçaria mortalmente a atividade de investir, se impusera plenamente aos sentidos, já que esta complexa e sutil condição do que chamaria contexto fundaste poderia desencadear em caso de colapso da transicionalidade uma separação que abriria o caminho à repetição e à compulsão, cara oposta da atividade psíquica estruturaste, a qual tem por função preservar a mistura pulsional, a investidura e a atividade de representação.
Este "entre", onde o infans "se tem", evidencia nossa condição de sujeitos em trânsito, naquela "terra de ninguém", tópica da utopia. Dotados de um pensar perceptivo, permanecemos sujeitos se nos sustentamos com um pé em cada uma das bordas desta fresta ou hiato situado entre a margem da alucinação de desejo e a margem da percepção do desconhecido, do Não Eu, da Ding inicialmente. Inicia-se - sustentada na atividade do fenômeno transicional - o domínio da "coisa", objeto originário perdido, enquanto se consolida este pensar paradoxal e a capacidade efetiva muscular, todo o qual, junto ao trabalho crescente de metáforas e metonímias, marca os prolegômenos do paradigmático jogo do carretel e a aparição dos espaços e a linguagem, presentes na famosa exclamação Fort-da.
Em uma sutil contínua reversão da perspectiva (que Escher maneja magistralmente), as categorias dentro-fora, Eu-Não Eu, meu-teu, real-imaginário, inanimado-animado irão decantando a dialética objetividade-subjetividade, preservando e estabilizando o pensamento paradoxal, próprio da saúde e da criatividade. Entre ilusão e desilusão, o Eu prazer se sustenta, sem deixar paralelamente de consolidar-se o Eu real definitivo, o qual afiança a vigência dos "dois princípios do acontecer psíquico", assegurando ao Eu a impossível e imprescindível coesão básica que lhe permite, em um pólo, o fantasiar (FREUD, El Criador Literario y el Fantaseo), base do estado de criar brincando, e brincar criando, enquanto adia no outro pólo a ação no mundo, que deve respeitar e adequar-se ao juízo e à representação que da realidade se faça o Eu.
Realidade subjetiva ou interna, realidade objetiva ou externa e realidade criada, transicional ou da zona intermediária da experiência formam as duas extremidades e "o entre".
A realidade produto desta terceira zona de experiência é a qualidade de realidade como produto dessa terceira zona de experiência, sustentada no pensamento paradoxal, as transações e o uso transicional dos objetos, é a qualidade de realidade que mantém "viva", segundo Winnicott, a realidade interna e a produção inconsciente, que ao mesmo tempo capacita para o encontro do objeto externo.
Esta realidade criada, e o pensamento paradoxal que a sustenta, não estão "submetidos" ao império do princípio de realidade, porém os considera paralela e relativamente.
Realidade criada-inventada, diria Watzlawick - que se caracteriza também por contar com possessões Não Eu cujo uso não está assediado pelas reclamações de objetividade, eficiência e lógica. Aqui vale a desmentida da castração, ainda em suas manifestações mais primitivas, perante a ausência e a ameaça da angústia traumática que acompanha ao "estado de desamparo", é outro eixo articulados do pensamento paradoxal. Poderíamos dizer, com os artistas: "Quando algo falta, eu en-sonhado, alucino e alivio essa falta que me impulsiona a buscar criando...".
Paradoxo e desmentido formam outra dupla que acompanha o trabalho da metáfora e das equações simbólicas, abrindo o caminho à complerização e à sexuação. Preservam dos excessos de angústia perante o crescente avanço da realidade como a condição de ser o outro e como dimensão frustrante.

A banda de Moebius e o desenhista Escher

Escher, o desenhista das transações e das tranformações, desenhou graficamente exemplos do fenômeno ilusionista que Moebius (arquiteto, matemático e mago) criou ao reverter um dos extremos de uma fita, antes de pegar ambos extremos, fabricando assim a famosa banda de Moebius, que continua brindando-nos ajuda para demonstrar que é possível sustentar o insustentável: o reino dos paradoxos que desafiam o pensamento lógico, pragmático, empírico e racionalista.
Sabemos que etimologicamente "paradoxo" significa "contrário à opinião", isto é, "contrário à opinião recebida e comum". Cícero escreve: "O que eles (os gregos) chamam de paradoxo, nós o chamamos coisas que maravilham". De fato continua dizendo o Dicionário de Filosofia de José Ferrater Mora (5a edição, Buenos Aires, América do Sul, 1965): "O paradoxo ideal, porque propõe algo que parece assombroso que possa ser tal como se diz que é". Mais adiante o dicionário especifica, ao referir-se a uma das noções de paradoxo chamado "paradoxo existencial", que esta "se propõe restabelecer "a verdade (enquanto que verdade "profunda") frente às "meras verdades" da opinião comum e até do conhecimento filosófico e científico. Neste sentido Kierkegaard definiu o paradoxo.
O paradoxo se manifesta, por exemplo, no fato de que o homem escolhe ou decide por Deus mediante um ato de rebelião contra Deus. O paradoxo não é forçosamente anti-racional, porém pode ser pré-racional ou transracional.
"Em geral - segundo esse dicionário -, pode se dizer que toda proposição filosófica ou científica que não tenha passado ao acervo comum oferece um perfil paradoxal. Este resulta patente nas origens da filosofia: o filósofo era no início um homem em solidão, porque pretendia revelar, atrás das coisas, uma realidade que só se 'via' com os olhos da mente. Neste sentido - disse Hegel - que a filosofia é o mundo ao contrário. É, por conseguinte, paradoxal de um modo constante e não somente, como a ciência, em alguns momentos da sua história".
Estas "ficções" criam o que para mim é uma "tópica e temporalidade em torção permanente", que - do jeito do "tempo em torção", termo usado por W. Baranger - permite "pensar e localizar o impensável", já que tempo, espaço e lógica interagem numa dinâmica característica do pensar paradoxal, o qual brinda a possibilidade de dotar de vida uma prossessão Não-Eu assim animada de existência, que não fica submetida ao sentido de realidade, e pode ser o suporte de um fantasiar animista, que lhe dá vida e argumento.
O paradoxo é ativado quando a onipotência criadora ou magia do pensamento experimenta uma confrontação com a realidade da ausência, efeito de uma falta relativa dos fenómenos de acoplamento "perfeito" descritos por Winnicott, os quais fundaram previamente a breve e indispensável experiência de ilusão, antes da modificação do estado do Eu primitivo real, suporte dos fenômenos transicionais. O pensar paradoxal sustenta o "como se", e dá lugar ao trabalho metafórico e às metonímias; assim, quase como no trabalho do sonho, se sustenta a realização do desejo, desejo ensonhado, típico do brincar e do criar.
Tópica e dinâmica não questionada pelos adultos na saúde, nem pelo próprio acionar da criança com a realidade. Esta nova e original dimensão da realidade que Winnicott descobriu em toda sua significação e o pensamento que estamos estudando convive em paralelo com a necessária cordura para viver no mundo.
Enquanto se afiança a transicionalidade, a linguagem lhe outorga consistência a esta singular capacidade humana de habitar a dimensão simbólica cultural, destino de pulgão que articula simbolização e sublimação.
O fenómeno, baseado - como especificou Winnicott - num paradoxo aceito pelo infans e pelo outro, como presença respeitosa que lhe permite ao infans brincar a sós e continuar sua subjetividade surge, em suas próprias palavras, "entre a criatividade primária e a percepção objetiva baseada na prova da realidade" (Realidade e Jogo, Editorial Granica, página 29).
Esse mesmo texto, na página 30, marca uma precisão fundamental e esclarecedora: "O paradoxo se sustenta numa pergunta que NÃO vai ser respondida".
Existe a pergunta, que permanece em suspenso, como garantia da cordura, mas, se tentasse responder (o que implicaria algo assim como despedaçar a borboleta para investigar a origem do seu existir), interromper-se-ia a produção normal - se não é desafiada com perguntas objetivantes, produto do anseio de certeza - dessa qualidade de realidade criada, efeito de alucinar do desejo, ao mesmo tempo repetição da experiência de satisfação, o mesmo alucinar "que cria o peito".
Sabemos que sem uma suficiente desilusão, que paralelamente abra passo à realidade, a frustação e a experiência de desmame - como eixo da experiência de separação, perda e duelo pelo primeiro objeto de amor- não
teriam lugar as condições para que o pensamento paradoxal se instale, e se sustente em paralelo a magia criadora e ilusionista, e um sólido acesso à realidade consensuada própria do acionar do Eu realidade definitivo.
Recém então se instaura a "zona natural" à que se refere Freud.
Os fracassos nestes processos constitutivos parecem atentar contra esta lógica ilógica que protege as condições de aparição do sem sentido do inconsciente.
A idéia de uma superposição de realidade e fantasia, tão essencial neste fenômeno do funcionamento mental descoberto por Winnicott, parece desafiar o anseio de certeza e objetividade, que de tempos em tempos domina os pensantes do mundo científico.
A "solução" - do paradoxo -, nos antecipa Winnicott, com respeito a algumas patologias atuais, "conduz a uma organização de defesa que no adulto pode se encontrar como auto-organização - dividida em - verdadeira ou falsa". Isso alude à estrutura de "falso seIf.
Tentação cientifista que pretende resolver o enigma característico desta zona esfumada e incerta, zona de plasticidade máxima, própria da realidade criada, custodiada por este singular modo de funcionamento mental que é o pensar paradoxal. Dom capital e valor distintivo da condição falante do humano, habitante do mundo sensual e simbólico, o qual cresce como terceiro espaço - espaço da cultura, tesouro não perecedoiro - graças a este dom do pensamento, vinculado à produtividade inesgotável do inconsciente. Em palavras de Winnicott, trata-se de reconhecer que "o paradoxo aceitado pode ter um valor positivo", e eu diria com Winnicott que isso se debe ao que lhe permite forjar-se ao sujeito de subjetividade, devedora da ilusão, que lhe permite acreditar que aquilo que ele aceita, existe na realidade.
A futilidade, sentimento que acompanha a perda desta capacidade para experimentar os fenômenos transicionais, instala uma das condições mais penosas a qual acompanha e define algumas das patologias atuais, pondo em evidência os efeitos que se dão quando se perdeu alguma coisa essencial centrada na união ativa desses três espaços descritos por Winnicott.
União sustentada pela ilusão - entendida segundo a conceitualização de Winnicott -, o fenômeno transicional e o pensar paradoxal é quem outorga significado específico à experiência humana.
O sentido do próprio viver no mundo, aquilo que se perde no sentimento de futilidade, está profundamente enraizado nesta qualidade criadora, efeito da produção do inconsciente, evidenciado neste carácter singular do pensar humano que chamamos de pensamento paradoxal.